quinta-feira, 19 de julho de 2007

Oficina de escrita (I)

Não obstante estivesse para chover, não podia passar sem sair e tornar a mirar, ainda que por um instante, o perfil da cidade. O céu estava cinzento, cheio de pesadas nuvens, como quando aqui cheguei pela primeira vez, há dois anos.
Sentado na poltrona, a olhar para fora da janela, como quem se encontra perdido em pensamentos e memórias há muito passadas, recordo esse princípio de uma nova vida...
A atmosfera era muito semelhante à de agora... O sol não dava o mínimo sinal de existência e as nuvens preenchiam todo o céu...
Quando pus um pé nesta cidade nada via, pois a fumaça negra, espessa, que saía lentamente da chaminé do comboio que acabara de parar, tinha-se concentrado de tal maneira que tudo à minha volta se havia tornado imperceptível.
Procurei no meio de toda aquela confusão de transeuntes e fumaça, a minha bagagem e dirigi-me para um táxi que se encontrava estacionado à entrada da gare...
"Para a pensão Estrelas" disse eu, sem qualquer desconfiança sobre o que me iria acontecer nesse profético dia...
Quando o táxi finalmente parou, deparei-me com um edifício soberbo, de onde cada janela exalava uma sensação de pureza e felicidade...de frescura... Era o que eu procurava. Sem mais demoras, abri as portas duplas e entrei naquele místico loval...Era diferente de tudo o que tinha observado pela janela do táxi... A cidade era sombria, os seus habitantes eram hostis e frios... Aquele lugar parecia retirado de outra dimensão e colocado ali, como que se de uma miragem se tratasse.
Dirigi-me à recepção e toquei à pequena campainha que repousava sobre o balcão. Então vi a criatura mais bela à face da terra.
Avançava lentamente para o balcão, com os seus longos e sedosos cabelos loiros, brilhantes como o sol, a ondularem levemente ao sabor dos movimentos de sua dona... Os seus olhos brilhantes, cor de turquesa, ainda os lembro quando contemplo o mar...
Falei atrapalhadamente com ela, e de seguida fui-me instalar no quarto que a rapariga me havia destinado.
Após uns momentos, sentei-me numa poltrona de veludo vermelho, esta mesma em que me sento agora e começei a escrever...
Fiz poemas de quatro e cinco páginas acerca daqueles olhos vindos do mar e daqueles cabelos enviados pelo sol para aquecer os meus dias.
Descobri mais tarde que a dona do meu pensamento e das minhas poesias se chamava Sol, nome mais apropriado penso que não existiria.
Durante um ano, fui-me aproximando e ganhando a confiança de Sol e, durante um ano, ela foi a musa das minhas poesias. Um dia contou-me um segredo seu:
"Sabes, tenho algo para te contar...Sei como me olhas, sei que não é apenas simpatia que sentes por mim, e agradeço-te tudo o que me tens feito..."
Sentia que ela me queria dizer algo importante e começei a ficar preocupado.
"Esta pensão é tudo o que tenho...deposito nela todo o amor que possuo no meu coração, destinando-a a inquilinos que saibam respeitar tal amor, que sejam dignos de tal aconchego que, muitas vezes, não encontram em suas casas. Mas tenho medo...medo que fique ao abandono e que acabe por ser destruída com as maldades e ganâncias do mundo lá fora..."
"Porque dizes isso?" Tinha de perguntar... "Esta maravilhosa pensão há-de estar muitos e muitos anos a teu encargo e hás-de receber os melhores e mais dignos inquilinos, que saibam respeitar e amar este edifício como tu o fazes".
"Quem me dera, e desejo que assim seja, mas infelizmente não vou ser eu a observar tais sonhos a realizarem-se..."
Começei a tremer... Não sabia o porquê de ela me fazer tal afirmação, mas o meu coração começou a bater desenfreadamente como se já soubesse a resposta.
"Dentro de trinta dias poderei já não cá estar..."
Não foi preciso mais nada...Aproximei-me dela, abracei-a, dei-lhe um beijo e disse ainda: "Não te preocupes...Eu cuidarei de tudo".
E um mês se passou, comigo a cuidar do sol da minha vida, que aos poucos ia perdendo o seu brilho... Ainda me lembro, todas as sílabas, todos os incontáveis "obrigado" pronunciados por ela, cada vez que a ajudava com algo, ou mesmo quando me sentava à borda da sua cama para a acarinhar até ela adormecer.
Mas aos poucos, o mar espelhado nos seus olhos ia ficando baço e o sol ia perdendo o seu brilho. Até ao dia do último obrigado.
Passava já um mês e meio desde que havia descoberto o que se passava com Sol. Acordei com um trovão que rompeu no céu escuro como breu. Era de noite e tinha adormecido encostado à sua cama. Procurei a sua face por entre a escuridão e reparei que ela olhava para mim...Agarrou a minha mão e acariciou-a.
A sua cara estava pálida e reparei que o seu último brilho estava a desaparecer...
Hoje ao recordar as palavras que me dirigiu, ainda me cai uma lágrima pelo rosto, de tão viva que ela está no meu coração e na minha alma.
"Sei que é hoje...Sei que não vou ver o sol nascer... Não vou ver um novo dia começar e vou dormir um longo sono... Apenas te quero dizer que se não tivesses entrado na minha vida, este momento teria vindo há muito tempo atrás, mas estaria sozinha e receosa... Como estás comigo, não sinto receio... Estou descansada, pois sei que tudo o que consegui na vida fica bem entregue à única pessoa a quem realmente sou capaz de confiar tudo... Cuida bem do que te deixo, concretiza o meu sonho, e sê feliz."
Eu não conseguia pronunciar nem uma sílaba...Estava petrificado e prestes a desfazer-me em lágrimas... Mas ainda pronunciei umas míseras palavras... Míseras, pois não era capaz de falar decentemente... Gostaria de ter dito muito mais coisas do que as que proferi naquele dia, mas as mais importantes não deixei de dizer...
"O teu sonho não é mais meramente teu... O teu sonho é o meu sonho... É o nosso sonho... E vou cuidar do nosso sonho para sempre, torná-lo realidade...Nunca desistirei de o concretizar... Fica descansada que to prometo aqui, em nome do nosso amor"
"Obrigado" e o brilho desapareceu para sempre...
Agora a pensão contínua em funcionamento, embora não com o mesmo brilho de há dois anos atrás, pois falta um sol brilhante para o aquecer... Também o sol da minha vida desapareceu... O mundo deixou de ter sol e mar, pois o seu representante terreno houvera desaparecido de uma forma tão repentina e injusta...
Quanto às minhas poesias...essas continuam presas ao passado, a falar de uma menina que era o meu sol e o meu mar...

By: Just me

2 comentários:

Joana disse...

também gosto do teu:)
beijoo

Fuzz' disse...

A maneira como foi escrito. adorei tu do encaixa e forma uma especia de atmosfera que nos leva realmente a viver este texto.
Parabens esta muito bem conseguido.
e a vida muitas das vezes nao passa mesmo disso. de uma ilusao de uma serie de momentos maus e um momento bom. mas nos apreciamos o que nao temos. se a vida fossem so momentos bons a palavra bom nao teria sentido.
beijo.
keep it up!